INTELIGÊNCIA PRIMATA
Finalmente uma noite bem dormida. Logo cedo, no rancho do
orfanato para chimpanzés, o primatologista
Innocent Mulenga dá uma aula
sobre os "greats apes" (grandes mamíferos primatas) que são
chimpanzés, gorilas, orangotangos, bonobos e seres humanos que não têm cauda.
Não somos macacos. Macaco é o animal parecido com primata mas tem rabo.
Chimpanzé é muito parecido com humano, tem 98,6 por cento da
nossa genética.
AMOR DE MÃE
É um bicho inteligente que utiliza as mãos e pedaços de madeira
e gravetos como ferramentas para as necessidades diárias e demonstra, por sons
e gestos, os sentimentos e as emoções. A gestação da fêmea é de oito meses,
quase igual ao período da mulher. O filhote mama até os quatro anos de idade e
depende da mãe até os cinco anos. A expectativa de vida é de 55 anos quando
estão em cativeiro, mas vivem muito menos nas selvas da África porque são
vítimas dos caçadores.
Igual a humano, chimpanzé guarda luto quando morre um animal
do grupo. O sofrimento da mãe emociona qualquer coração quando ela perde um
bebê. Durante dias o pequeno chimpanzé é velado no ninho no alto de uma árvore.
Depois o bebê é enterrado pela própria mãe ou ela, com típica expressão da dor
da perda, entrega para um funcionário do orfanato o corpinho do filho. A mãe
chimpanzé, assim como as nossas, vai ficar triste por um bom tempo até que a
rotina torne mais fácil suportar a dor da saudade.
SHEILA, MÃE DE CHIMPANZÉS
O Chimfunshi Orphanage foi criado em 1983 pelo casal Sheila
e Dave Siddle. Ele morreu há seis anos. Ela, aos 81 anos de idade, continua em
plena atividade protegendo animais vítimas de agressão do ser humano.
Sheila e a filha Sylvia recebem a equipe e reportagem com
alegria. O aperto de mão da velhinha não é fraco e ela avisa com bom humor:
"Cuidado, posso quebrar os seus dedos". Me admiro com a força da
octogenária e respondo com um elogio: "Madame, she is a strong
woman". De fato, aquela senhora é uma mulher forte.
A família de Sheila imigrou da Inglaterra para o continente
africano em 1947. Ela era uma moça de 16 anos. Uma viagem de oito meses
enfrentando deserto e selva. O destino era a África do Sul mas quando a família
britânica chegou em Zâmbia se encantou com o lugar decidiu ficar. "Naquela
época não havia guerra nem caçadores cruéis e tinha muito mais animais que nos
dias de hoje", lamenta.
Antes de visitar os recintos onde ficam os chimpanzés ela
nos recebe em sua casa repleta de fotos mas paredes. Imagens do marido Dave,
filhos, netos, bisnetos e, é claro, de animais. Muitas de chimpanzés e de
Billy, um hipopótamo que ela amava tanto quanto um filho. Sheila fica triste ao
exibir um álbum de fotografias de Billy e se lembrar do animal porque ele
morreu há menos de seis meses e a dor ainda não calejou em seu coração.
HIPOPÓTAMO NO SOFÁ
Billy é nome masculino, mas tratava-se de uma fêmea que foi
resgatada quando era um bebê recém-nascido. A mãe foi morta por caçadores e a
hipopótamo foi salva por um ranger que se chamava Billy Willyam. Quando o nome
foi escolhido em homenagem ao herói que a salvou ninguém sabia que se tratava
de uma fêmea e era tarde demais para mudar. Ficou Billy e pronto.
Hipopótamo é o animal mais agressivo e perigoso do
continente africano, mas Billy não sabia disso. Criado desde bebê por seres
humanos era dócil. Nos primeiros dias de vida tomava leite na madeira.
Acostumou-se a dormir em um sofá que arriou as pernas quando o animal cresceu.
Quando Billy morreu pesava 1500 quilos.
Sheila ironiza que Billy era um "bom católico"
porque ele foi batizado e ficou quietinho durante o longo sermão de uma hora e
meia. Quando Sheila resolvia passear de barco era um problema porque Billy
também queria embarcar. Onde Sheila ia o hipopótamo seguia atrás. Se alguém se
atrevia a demonstrar agressividade contra a mulher teria que se acertar contas
com Billy. Para ele, ela era a líder do seu grupo e a defendia de todos os
perigos.
Viemos aqui para falar de chimpanzés, mas Billy era a
mascote do orfanato e Sheila se comove com o sofrimento de toda espécie de
órfão e não nega abrigo.
PAL, A PRIMEIRA VÍTIMA
Pal foi o primeiro chimpanzé a ser socorrido em Chimfunshi.
Estava ferido e traumatizado com as agressões que sofrera. A fama de Sheila e
de Dave de dedicação aos animais se espalhou, não parou de chegar novas vítimas
e hoje o orfanato abriga 123 chimpanzés, sendo que 70 deles foram resgatados e
os demais nasceram aqui. Sheila gostaria de receber mais, mas, segundo ela, o
dinheiro não é suficiente e o espaço para o conforto dos animais ficou
limitado. A fazenda é de 25.000 acres e apenas 965 acres tem cerca eletrificada
para garantir a segurança dos chimpanzés.
MÃOS FERRAMENTAS
Hora de conhecer os primatas de Chimfunsi. Chegamos na hora
em que os tratadores vão alimentar os chimpanzés. A barulheira é de ensurdecer.
Para o almoço os animais são confinados em recintos com grades e separados em
quatro ambientes para evitar briga na disputa pela comida. Os mais jovens e
mais fortes roubam o alimentos das fêmeas e dos mais fracos. A divisão facilita
a partilha. Os 123 chimpanzés consomem o equivalente à carga e dois caminhões
de alimento por semana. Comem frutas e vegetais e adoram biscoitos e balas de
sobremesa.
É impressionante a habilidade dos chimpanzés com as mãos e
os cinco dedos longos. Desembrulham balas e pacotes de biscoito, dividem ao
meio a casca grossa da laranja do mato para servir de caneca na hora de beber
água, manipulam gravetos para cutucar formigueiros, cavam, constroem ninhos e
se atrevem a improvisar escadas com pedaços de pau. Parecem gente.
LARANJA SELVAGEM E IMPUNDU
Além de comprar a comida no comércio da cidade de Chingola,
os funcionários do orfanato também colhem frutas produzidas na fazenda.
Experimentei duas delas, bush orange, a laranja do mato africana, e impundu.
A laranja do mato tem a casca dura. Atirei fruta em uma
parede para quebra-la. O conteúdo tem aparência de um cérebro formado por
vários gomos. A polpa de cada gomo envolve um pequeno caroço e gosto é um pouco
parecido com a nossa laranja pêra, não muito doce nem muito azeda. Gostei.
Impundu é uma fruta redonda e pequena com coroço e sabor que
lembra um pouco banana nanica. Não é ruim. Os chimpanzés adoram tanto laranja
do mato quanto impundu. Eles também apreciam um limão local de casca grossa e
se deliciam com repolho. A comilança do almoço começa às 11h30 e dura mais de
uma hora. Quando estão saciados os chimpanzés são soltos e, em bando, se
embrenham na selva.
A VELHA DAMA E A SAUDADE
Sheila nos convida para um bate papo na casa dela. A
conversa é longa. Queremos saber mais da vida dela mas é a protetora dos
chimpanzés quem mais faz perguntas sobre a nossa equipe e sobre o Brasil.
No
canto da sala há uma televisão que raramente é ligada. A filha Sylvia, a nosso
pedido, liga um velho vídeo cassete e exibe um antigo documentário em que uma
das estrelas é Billy, a hipopótamo, e um dos personagens é Dave, o patriarca de
morreu há seis vítima de enfisema pulmonar. Por alguns instantes Sylvia se
retira da sala e Sheila pede para Felipe não gravar imagens dela naquele
momento.
A saudade fala alto, as duas estão emocionadas e as lágrimas são
inevitáveis.
Amanhã a gente volta porque ainda temos o que aprender sobre
chimpanzés.
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