terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

África Selvagem


O GALO DA MADRUGADA
Hoje vamos voar para Livingstone, sul de Zâmbia, às 10 horas da manhã e estamos a apenas uma hora e meia do aeroporto de Chingola. Finalmente um dia que poderíamos dormir até mais tarde. Poderíamos! 

Três e meia da madrugada um galo maldito me acorda com seu cantar desafinado. Ele está do lado de fora do rancho onde me hospedo mas o canto é tão estridente que tenho a sensação que ele está ao lado da cama. Pior, noto que não se trata de apenas um mas de vários galos. Aquela sinfonia louca me atormenta, tento dormir novamente e até consigo alguns momentos de cochilo. 

Me levanto com o dia clareando e encontro Felipe e Ingrid que estão praguejando pelo mesmo motivo. Não fui a única vítima do galo da madrugada.

PÔR DO SOL NO ZAMBEZI
Chegamos às 10 horas em ponto no aeroporto de Chingola e o piloto Brad já estava à nossa espera. Acomodamos a bagagem e decolamos. Duas horas e quarenta minutos depois pousamos em Livingstone, fronteira de Zâmbia com o Zimbábue. Em uma Land Rover de cabine aberta,  seguimos para o Maramba River Lodge. Hoje não haveria tempo para safari e saímos, à bordo de um grande barco, apenas para apreciar a paisagem fascinante ao pôr do sol no rio Zambezi.


A ORQUESTRA E A VELHA TARADA
Quando o alerta do iPad soou às 5h30 eu já estava acordado e ouvia em silêncio uma sinfonia de pássaros. São várias espécies, cada uma com seu canto único. Juntos, os passarinhos formam uma orquestra afinada para saudar o despertar sol.

Abri as cortinas do meu chalé e deixei transparecer meu corpo semi-nu quando fui surpreendido por uma senhora com aparência de mais de 60 anos mirando em minha direção um potente binóculo. Pensei se tratar de uma velha tarada e logo notei que um senhor, provavelmente o marido dela, estava por perto e também portava um binóculo. 

Foi quando minha ficha caiu. Eram observadores de pássaros, pessoas que se levantam antes do sol raiar porque é à primeira luz do dia que as aves promovem uma verdadeira farra musical e fica mais fácil observa-las. O casal sexagenário estava ali para apreciar o concerto daquela orquestra. Em pensamento me desculpei com a velhinha e conclui que não era possível uma mulher vouyer se interessar por este magrelo descabelado e sonolento.

FUMAÇA DE TROVÃO
Stan, um morador local, veio buscar nossa equipe à 6h10 da manhã. Seguimos para Vitória Falls, as cataratas que ficam na divisa de Zâmbia com o Zimbábue. Foi decepcionante porque estamos no fim da estação da seca e as águas do rio Zambezi não abastecem as cataratas o suficiente para o grande espetáculo que acontece durante a cheia.

As cachoeiras têm o nome de Vitória em homenagem à rainha da Inglaterra e foram descobertas pelo explorador britânico David Livingstone em 1875. O homem certamente ficou extasiado com o que o viu. O grande volume de água, de 5 milhões e 200 mil litros cúbicos por segundo, causa estrondo ao despencar por paredões que chegam a 162 metros de altura e 1070 metros de extensão. O spray provocado pela queda atinge um quilômetro de altura e pode ser visto a longa distância, tanto que os nativos batizaram a cachoeira em dialeto lozi, a língua local, de mozi-o-tunya, que quer dizer "fumaça que troveja", nome escolhido por causa do barulho de tempestade que ecoa ao longe.

De 2007 a 2010 a Vitória Falls foi considerada uma das sete maravilhas naturais do mundo na lista da New Open Word Foundation, dentre 261 localidades em 222 países. Mas perdeu o posto para as nossas cataratas do Iguaçu, no Paraná, que, francamente, são muito mais bonitas.
As seis atuais maravilhas naturais são: Amazônia do Brasil e mais oito países, Cataratas do Iguaçu (Brasil e Argentina), Baia de Halong com 1969 ilhas no Vietnã, ilha vulcânica Jeju Island na Coréia do Sul, Parque Nacional de Komodo na Indonésia, Parque Nacional do rio subterrâneo de Porto Princesa nas Filipinas, Montanha da Mesa da Cidade do Cabo na África do Sul.



TORCIDA PELO LEÃO
Na minha infância os filmes em preto e branco de Tarzan, com Johnny Weissmuller, povoavam a minha mente sobre os desafios da selva e o medo de leões invadia os meus sonhos. Mas Tarzan enfrentava a fera apenas com uma faca e vencia toda batalha. Leão em fuga ou leão morto era o resultado da luta e Jane, a namorada do herói das selvas, era salva do perigo. Torcia por Tarzan na briga com o leão. Hoje, com certeza, torceria pelo leão. Eles são as vítimas do homem mau.

O BICHO PEGA
Viemos a Livingstone para um encontro com leões. Lion Encounter é o nome da organização que executa um projeto para reproduzir leões e soltá-los na natureza. Um trabalho que envolve 48 funcionários e 15 voluntários que vêm de diversos países para a Zâmbia selvagem. Encontramos belgas, britânicos, alemães, suíços , suecos e norte-americanos. Eles ficam temporadas de duas a quatro semanas trabalhando duro. Limpam cocô de leão em recinto fechado, carregam carniça para alimentar os felinos e fazem longas caminhadas sob o sol de rachar, além de outras dezenas de tarefas. 

Dormem em alojamentos sem ar condicionado e convivem com os insetos, inclusive o mosquito transmissor da malária. Um voluntário disse que não dá para suportar o calor e tem que abrir a janela e é quando os insetos invadem o ambiente. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Além de dar duro, os voluntários pagam as despesas com hospedagem e alimentação e ainda têm de deixar uma doação em dinheiro para a organização Lion Encounter.



AMOR PELO GATO
Jacqui Gnazzo, 27 anos, é herdeira de uma fazenda na Pensilvânia (EUA) onde cria cavalos. Vai pagar nove mil reais para servir como voluntária durante três semanas. Serão seis mil para a Lion Encounter e mais de três mil em passagem aérea. A moça diz que realiza um sonho. A idéia de se encontrar com leões surgiu cinco anos atrás. "É o gato que mais gosto", justifica o investimento.

O advogado sueco Edward Lundqvisti demorou 36 anos de sua vida para se encontrar com leões e está feliz  por viver essa oportunidade. Gastou mil dólares a mais que Jacqui por vai ficar quatro semanas. Pergunto se vale se sacrificar, como por exemplo suportar mau cheiro de carniça. Ele garante que, para somar experiência de vida, vale qualquer sacrifício e que não trocaria as três semanas com leões por uma bela praia no Caribe.

PAIS E FILHOS
Estamos em território que tem rei. Mas não é um velho soberano que recebe nossa equipe de reportagem. Três crianças preguiçosas nos recebem à sombra de uma árvore. Um macho de nove meses e duas fêmeas de seis meses e meio. Lindos os leões. São novos mas já são fortes e têm o instinto do predador.

Não se pode vacilar na presença dos pequenos felinos.

Cephas Maingaila, cuidador de leões, outro funcionário e quatro voluntárias formam uma equipe para caminhar com os bichos. Temos que andar em grupo. Quem se desgarra vira presa. Os bebês foram separados dos pais, os cuidadores fazem papel de pai e as voluntárias de mãe. Estimulam os pequenos a desenvolver os costumes de leão em vida selvagem e utilizar e a aflorar o instinto de caçadores. É a primeira etapa de um treinamento que dura até cinco anos, quando estarão prontos para serem soltos em um parque nacional.




PREGUIÇA AGUDA
O sistema digestivo do leão é lento o que o torna preguiçoso. O animal dorme de 18 a 20 horas por dia. Procura a sombra das árvores porque a temperatura passa de 40 graus Celsius. Leão tem pelagem grossa e por isso transpira pela boca e, principalmente, pelas patas. As marcas pretas na ponta e rabo e atrás das orelhas servem para comunicação em grupo na hora da caça. O felino nasce com olhos verdes que ficam cor de mel nas primeiras semanas de vida.
A caminhada de duas horas com leões rendem boas informações, mas nossa equipe ainda vai aprendem muito mais em novos encontros com as feras.



ALGO PODRE NO AR
Ao final da tarde notamos movimentação no local onde é separada a comida dos leões. De uma caminhonete Hi Lux funcionários e voluntários descarregam quatro burros que acabaram de ser abatidos. Os animais são cortados em pedaços grandes e guardados fora da geladeira. Amanhã vamos entender o porquê.



VIDA BREVE
Nossas atividades em Livingstone acontecem de manhã e no final da tarde. Ninguém suporta o calor do meio do dia, nem mesmo os animais. Começamos o dia com mais uma longa caminhada com leões para garantir boas imagens e coletar novas informações.

Os leões se mordem, se atracam e rolam no chão. A brincadeira é um treinamento que vai servir para o resto da curta vida deles na disputa por território de caça e na ação para abater presas.
Se comparada com a expectativa de vida dos humanos, leão vive pouco. Na natureza os machos chegam a 15 anos e a 25 em cativeiro. As fêmeas atingem 20 anos na natureza e 25 em cativeiro.

RICOS, COVARDES E CRUÉIS
Leões vivem menos em ambiente selvagem porque cada vez mais perdem áreas de caça por causa do crescimento das vilas, do desmatamento  e da ação dos caçadores locais que matam para comer e dos milionários que chegam na África de todos os continentes, principalmente da Europa e dos Estados Unidos para caçar leão por puro divertimento. 

Os caçadores ricos chegam a pagar até 250 mil dólares por um safari, cerca de meio milhão de reais. Recentemente um escândalo envolvendo o rei Juan Carlos abalou a Espanha. Ele participava de um safari para caçar leões, caiu do cavalo durante a caçada, fraturou um fêmur e teve que voltar correndo para o seu médico europeu. A  notícia vazou na imprensa. O rei esbanjava dinheiro enquanto o povo do seu país era castigado pela crise econômica e teve que se explicar. Pediu desculpas aos espanhóis porque estava torrando dinheiro público, mas esqueceu-se de pedir desculpas ao resto do mundo por assassinar leões na África.

A caçada dos ricaços pode ser selvagem, na natureza, onde os leões têm alguma chance de fuga ou defesa. Mas existe safari em fazenda fechada com cerca elétrica. Os leões são acuados para garantir o tiro certo do caçador. Uma covardia.

PERTO DO FIM
Entidades de proteção animal africanas estimam que nos últimos 20 anos a população de leões foi reduzida em cerca de 80 por cento.  A organização Lion Encounter calcula que hoje restam apenas 20 mil animais em continente africano. Vinte anos atrás eram 250 mil. Especialistas em vida animal afirmam que a maior ameaça é a falta de conscientização das pessoas para o risco de extinção dos leões e falta de políticas e recursos financeiros para reprodução em cativeiro e soltura em parques nacionais. O alerta vermelho já está ligado.


COMIDA NOJENTA
É fim de tarde, um mau cheiro de revirar o estômago se espalha pelo ar e me lembro dos burros abatidos no dia anterior e que não foram guardados em geladeira. O fedor da carniça e o calor insuportável provocam um mal estar de causar desespero, mas, temos gravar o almoço das feras. Leão come carne fresca mas também aprecia carne fedida. Por instinto, sabem que onde voam abutres tem animal morto.

Dois funcionários e duas voluntárias têm a ingrata tarefa de carregar a carne. O sangue do burro escorre pelo assoalho da carroceria da caminhonete. A careta de uma voluntária revela que o esforço é grande para suportar missão tão nojenta.

Os leões que vão ganhar a comida estão confirmados. Eles ficam assim, presos por pelo menos dois anos, até atingirem a maturidade sexual para reprodução e idade para começar as caçadas. Um macho e seis fêmeas se banqueteiam com carne burro. Demoram cerca de 30 minutos para devorar os nacos gigantes da carne. A língua áspera como uma lixa é instrumento para desgrudar a carne dos ossos.




CEDO PARA O SEXO
Nesse recinto não tem namoro. Ainda não chegou o momento de o macho cobrir as fêmeas. Eles vão estar maduros para o sexo só depois de dois anos e meio, mas só estarão aptos para cruzar e reproduzir com cinco anos de idade. As fêmeas são mais precoces e estarão prontas para gerar filhotes aos quatro anos de vida. A gestação dura de 100 a 110 dias. Os leões nascem pequenos, mas crescem muito e chegam a pesar até 200 quilos.

MÃE INDIFERENTE
A administradora da fazenda de leões, a britânica Cara Watts, é especialista em comportamento e saúde animal. Ela conta que a leoa é boa e má mãe ao mesmo tempo. Boa porque protege os pequenos enquanto são dependentes e má porque na hora da fome ela se alimenta primeiro e, se sobrar dá de comer aos filhotes. Mas a maior maldade é ignorar quando o filho morre ou é retirado do bando. Ao contrário dos chimpanzés, cujas emoções afloram como nos humanos, as leoas não demonstram nenhum sentimento.



TREINAR PARA COMER
Hoje temos que suportar novamente o cheiro de carniça. Vamos conhecer leões adultos, um macho e seis fêmeas, que estão soltos em uma área cercada de 700 acres (2.819.900 m²). Um deles utiliza colar cervical com transmissor de rádio para facilitar o monitoramento do grupo. Com um receptor, a bióloga inglesa Rae Kokes indica o local exato onde as feras descansam. 

Especialista em conservação de vida animal, a pesquisadora analisa pequenos detalhes do comportamento leonino. Todo gesto é anotado como lamber a pata, trocar de sombra, rugir, movimentar orelhas para comunicação, se levantar e revelar sentido aguçado ao notar movimentação de outros animais. É o parecer da bióloga que vai definir o momento certo para que os leões sejam levados a um parque nacional e possam viver como manda a natureza.

FOME DE LEÃO
Onde estamos não é seguro descer do carro. Aqui os leões já praticam a caça e não queremos virar almoço. Outro veículo, uma caminhonete, leva a carcaça de um burro dividida em sete pedaços e deixa longe de onde os animais estão. Trata-se de uma medida estratégica para não dar carne na boca, sim estimular a procura pelo alimento. Não demora muito para a leoa líder farejar  e correr em direção ao banquete. Os demais a seguem e noto que o macho fica para trás. 

Ele é mais pesado e mais lento, mas não vai passar fome porque tem comida para todos. Cada um com o seu naco, os leões devoram rapidamente a comida e finalmente, ao vivo, compreendo o ditado popular "fome de leão" que define quando alguém come com apetite voraz.
Com a pesquisadora, percorremos os quatro cantos da área e encontramos impalas e outros antílopes que foram colocados ali para que os leões pratiquem a caça. Há períodos em que deixam eles sem carne de burro de propósito para que os felinos aprendam a se virar. "A leoa líder do grupo já caçou", orgulha-se Rae.


A GRANDE GUERRA
Convidamos a bióloga Rae para assistir e comentar as imagens de um vídeo que já foi assistido por mais de 80 milhões pessoas nas redes sociais e exibido em emissoras de televisão do mundo todo, inclusive nos canais especializados em vida selvagem Animal Planet e National Geographic.

David Budzinski é um turista de sorte, estava no lugar certo e na hora exata, às margens de um rio no Parque de Krüger, África do Sul. Ele tinha nas mãos uma câmera de vídeo amador e registrou durante pouco mais de 8 minutos imagens raras envolvendo uma guerra entre leões, crocodilo e búfalos. 

"A Batalha de Krüger" é o título do vídeo no YouTube.

Exemplo espetacular, gravado em plano seqüência, de como é a luta pela comida e pela sobrevivência na África selvagem.


O INCRÍVEL RESGATE
Uma manada de búfalos se aproxima do rio sem perceber que um grupo de leões está por perto. A fêmea caçadora percebe a aproximação, movimenta as orelhas para comandar a ação da equipe, espera o momento certo e parte em disparada para o ataque. Os búfalos partem em fuga mas um filhote se desgarra da manada e vira alvo. A leoa ataca, carrega a presa para o rio e logo recebe a companhia dos demais leões que puseram a manada para correr.

O pequeno búfalo está ferido e, até aqui, tudo indica que poderá morrer um poucos minutos. Os leões resolvem arrastar o búfalo para a margem mas têm uma surpresa, um crocodilo tenta roubar a comida e ataca. Há um segundo ataque e o crocodilo tenta levar o pequeno búfalo para dentro da água onde ele tem mais habilidade e força. Leões puxam de um lado e o crocodilo de outro. Pobre búfalo!

Quando parecia que os leões haviam vencido a batalha de Krüger, acontece uma grande surpresa, a manada de búfalos volta e cerca o grupo de leões enquanto o bebê búfalo sobre nas garras de uma leoa. O búfalo líder ataca e chifra uma leoa que parte em fuga e é perseguida até sumir na savana. Um segundo ataque e uma leoa voa com a potente chifrada. Ferida, também é perseguida e desaparece. Mesmo acuada pela manada, a leoa que domina o pequeno búfalo não abandona a sua presa até que um búfalo a agride e o filhote é resgatado ainda com vida. Investida final dos búfalos põe todos os leões, alguns feridos, para correr.





FLAGRANTE RATO

A bióloga Rae afirmou que aquele momento foi único. Ela analisou os movimentos, principalmente de orelhas, que definem a estratégia de ataque dos leões e finalizou: "O turista conseguiu documentar um fato raro no mundo selvagem envolvendo três espécies diferentes. Foi sorte grande".
Não há como não se impressionar com a batalha de Krüger. Qualquer um apostaria na vitória dos leões. Poucos contariam com um crocodilo na disputa. E certamente ninguém poderia acreditar que os búfalos voltariam para resgatar o filhote. Só mesmo nesta desafiadora África selvagem.


MAMA FASCINANTE
De Livingstone para São Paulo com conexão em Johanessburg. 



Estamos voltando e vamos chegar em casa na madrugada de 12 de novembro de 2012, segunda-feira. Não há viagem fácil, todas são cansativas. Mas o prazer do trabalho realizado nos faz superar as dificuldades e as dores do corpo. 



Em Zâmbia conhecemos um pouco mais da cultura e dos costumes de um povo alegre e receptivo. 



Enfrentamos o desafio de fazer safari a pé em território dominado por bichos perigosos. 



Convivemos com hipopótamos, zebras, crocodilos, elefantes e mais de uma dezena de outras espécies.




Invadimos, mas respeitamos o mundo selvagem, ao contrário do que fazem os caçadores covardes e cruéis que pagam até meio milhão de reais para caçar leões.



Estive várias vezes neste continente e sei que posso voltar muitas outras e sempre algo novo vai me surpreender. A Mama África sempre fascina.








quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

África Selvagem


TENTATIVAS DE FUGA
Hoje vamos conhecer três personagens, dois humanos, os tratadores Dominic Chinyama e Patrick Chambatu e Zabu, o macho alfa dos chimpanzés. Dominic está com a mão esquerda ferida e inchada e tem cicatrizes no braço direito. 

É comum o tratador vacilar no manejo com os animais e levar mordidas. Por causa da dor dos ferimentos ele estaria de folga, mas gentilmente foi ao trabalho apara atender a nossa reportagem. Ele trabalha há 18 anos no orfanato e diz que não troca de atividade por nada desse mundo porque se apegou aos chimpanzés e ama o que faz. 

Pergunto o que viu de mais interessante em sua rotina e afirma que a inteligência dos primatas é o que mais o surpreende e se recorda de três momentos. Lembra-se de um chimpanzé construindo uma escada com pedaços de madeiras para pular a cerca elétrica, outro cavando para escapar por um buraco sob a cerca e outro outro que lutou com violência para defender um chimpanzé mais fraco de um ataque. Interrompe sua lembrança acrescentando que são muitos os momentos ao longo de 18 anos e que teria que ficar um bom tempo narrando o que viu. 

Quero saber se Dominic já presenciou algum parto. Ele diz que quando vão parir as fêmeas seguem para a mata à noite e que é muito difícil flagrar esse momento, mas que teve a sorte de acompanhar o nascimento de um chimpanzé.

O SORRISO DO TRATADOR
Patrick é o tratador mais antigo do orfanato. Está aqui desde a inauguração em 1983 quando chegou Pal, o primeiro chimpanzé acolhido. O sorriso de Patrick é largo. 

O tempo todo ele revela a grande e branca arcada dentária. É felicidade pura estampada no rosto negro. Para ele não existe momento difícil no trabalho. Golias,  Renata, Regina.... 

À medida que atira comida para os chimpanzés ele pronuncia o nome de cada um e garante que sabe o de todos os 123 do orfanato. Pudera, são 23 anos convivendo com todos eles.

A chimpanzé Rita tem um bebê agarrado a ela o tempo todo. Patrick conta que ela teve gêmeos mas um morreu. Na hora de distribuir alimento ele dá atenção especial a ela e demostra todo o seu carinho. Patrick quer agradar os visitantes brasileiros mas não se dá bem. 

Fala que o Brasil tem o melhor futebol do mundo mas erra ao destacar que o nosso maior craque foi Maradona. Mostro meu descontentamento e corrijo afirmando que foi Pelé. 

Ele reconhece a falha e pede mil desculpas. "Sorry, sorry, Sorry". Assim como é costume dele, também abro um largo sorriso e com um aperto de mão me despeço da pessoa mais simpática que encontramos até agora em Zâmbia.



ZABU RESPEITA MULHER
Innocent Mulenga, o especialista em primatas, está com malária mas, mesmo assim, atende ao nosso pedido de entrevista para a televisão. São informações úteis para depois eu narrar as imagens que Felipe e Ingrid vão gravar. Juntos, observamos o comportamento dos chimpanzés e me impressiona como são parecidos com humanos nos momentos de carinho, violência, solidariedade, egoísmo e hierarquia.

Pará ilustrar o agir do amimais, Innocent conta a história de Zabu, o maior e mais forte chimpanzé do grupo e grande líder. O macho alfa tem 21 anos de idade e pesa 72 quilos. Nenhum chimpanzé ousa desafia-lo. Sua força e capacidade de liderança são incontestáveis para o bando. Zabu protege as fêmeas e os velhos. Se algum jovem tenta comer primeiro, o líder parte para cima aos murros e o guloso sai em disparada e aos gritos.

Innocent diz que antes o líder era Pal mas que Zabu se impôs depois de várias brigas violentas. Pal não era bom para as fêmeas. Além de não defendê-las, como deve agir um cavalheiro, elas ainda eram agredidas por ele. Zabu não gostava do que via, resolveu tomar controle da situação e declarou guerra a Pal que ergueu bandeira branca quando sentiu na carne que não poderia vencer a batalha. Durante o conflito as fêmeas apoiaram Zabu, o bom, e Pal teve que ser deslocado para outro bando.
Zabu, o líder justo, reina absoluto.




segunda-feira, 28 de janeiro de 2013


INTELIGÊNCIA PRIMATA
Finalmente uma noite bem dormida. Logo cedo, no rancho do orfanato para chimpanzés, o primatologista  Innocent  Mulenga dá uma aula sobre os "greats apes" (grandes mamíferos primatas) que são chimpanzés, gorilas, orangotangos, bonobos e seres humanos que não têm cauda. Não somos macacos. Macaco é o animal parecido com primata mas tem rabo.
Chimpanzé é muito parecido com humano, tem 98,6 por cento da nossa genética.

AMOR DE MÃE
É um bicho inteligente que utiliza as mãos e pedaços de madeira e gravetos como ferramentas para as necessidades diárias e demonstra, por sons e gestos, os sentimentos e as emoções. A gestação da fêmea é de oito meses, quase igual ao período da mulher. O filhote mama até os quatro anos de idade e depende da mãe até os cinco anos. A expectativa de vida é de 55 anos quando estão em cativeiro, mas vivem muito menos nas selvas da África porque são vítimas dos caçadores.

Igual a humano, chimpanzé guarda luto quando morre um animal do grupo. O sofrimento da mãe emociona qualquer coração quando ela perde um bebê. Durante dias o pequeno chimpanzé é velado no ninho no alto de uma árvore. Depois o bebê é enterrado pela própria mãe ou ela, com típica expressão da dor da perda, entrega para um funcionário do orfanato o corpinho do filho. A mãe chimpanzé, assim como as nossas, vai ficar triste por um bom tempo até que a rotina torne mais fácil suportar a dor da saudade.

SHEILA, MÃE DE CHIMPANZÉS
O Chimfunshi Orphanage foi criado em 1983 pelo casal Sheila e Dave Siddle. Ele morreu há seis anos. Ela, aos 81 anos de idade, continua em plena atividade protegendo animais vítimas de agressão do ser humano.

Sheila e a filha Sylvia recebem a equipe e reportagem com alegria. O aperto de mão da velhinha não é fraco e ela avisa com bom humor: "Cuidado, posso quebrar os seus dedos". Me admiro com a força da octogenária e respondo com um elogio: "Madame, she is a strong woman". De fato, aquela senhora é uma mulher forte.

A família de Sheila imigrou da Inglaterra para o continente africano em 1947. Ela era uma moça de 16 anos. Uma viagem de oito meses enfrentando deserto e selva. O destino era a África do Sul mas quando a família britânica chegou em Zâmbia se encantou com o lugar decidiu ficar. "Naquela época não havia guerra nem caçadores cruéis e tinha muito mais animais que nos dias de hoje", lamenta.

Antes de visitar os recintos onde ficam os chimpanzés ela nos recebe em sua casa repleta de fotos mas paredes. Imagens do marido Dave, filhos, netos, bisnetos e, é claro, de animais. Muitas de chimpanzés e de Billy, um hipopótamo que ela amava tanto quanto um filho. Sheila fica triste ao exibir um álbum de fotografias de Billy e se lembrar do animal porque ele morreu há menos de seis meses e a dor ainda não calejou em seu coração.


HIPOPÓTAMO NO SOFÁ
Billy é nome masculino, mas tratava-se de uma fêmea que foi resgatada quando era um bebê recém-nascido. A mãe foi morta por caçadores e a hipopótamo foi salva por um ranger que se chamava Billy Willyam. Quando o nome foi escolhido em homenagem ao herói que a salvou ninguém sabia que se tratava de uma fêmea e era tarde demais para mudar. Ficou Billy e pronto.
Hipopótamo é o animal mais agressivo e perigoso do continente africano, mas Billy não sabia disso. Criado desde bebê por seres humanos era dócil. Nos primeiros dias de vida tomava leite na madeira. Acostumou-se a dormir em um sofá que arriou as pernas quando o animal cresceu. Quando Billy morreu pesava 1500 quilos.

Sheila ironiza que Billy era um "bom católico" porque ele foi batizado e ficou quietinho durante o longo sermão de uma hora e meia. Quando Sheila resolvia passear de barco era um problema porque Billy também queria embarcar. Onde Sheila ia o hipopótamo seguia atrás. Se alguém se atrevia a demonstrar agressividade contra a mulher teria que se acertar contas com Billy. Para ele, ela era a líder do seu grupo e a defendia de todos os perigos.
Viemos aqui para falar de chimpanzés, mas Billy era a mascote do orfanato e Sheila se comove com o sofrimento de toda espécie de órfão e não nega abrigo.

PAL, A PRIMEIRA VÍTIMA
Pal foi o primeiro chimpanzé a ser socorrido em Chimfunshi. Estava ferido e traumatizado com as agressões que sofrera. A fama de Sheila e de Dave de dedicação aos animais se espalhou, não parou de chegar novas vítimas e hoje o orfanato abriga 123 chimpanzés, sendo que 70 deles foram resgatados e os demais nasceram aqui. Sheila gostaria de receber mais, mas, segundo ela, o dinheiro não é suficiente e o espaço para o conforto dos animais ficou limitado. A fazenda é de 25.000 acres e apenas 965 acres tem cerca eletrificada para garantir a segurança dos chimpanzés.


MÃOS FERRAMENTAS
Hora de conhecer os primatas de Chimfunsi. Chegamos na hora em que os tratadores vão alimentar os chimpanzés. A barulheira é de ensurdecer. Para o almoço os animais são confinados em recintos com grades e separados em quatro ambientes para evitar briga na disputa pela comida. Os mais jovens e mais fortes roubam o alimentos das fêmeas e dos mais fracos. A divisão facilita a partilha. Os 123 chimpanzés consomem o equivalente à carga e dois caminhões de alimento por semana. Comem frutas e vegetais e adoram biscoitos e balas de sobremesa.

É impressionante a habilidade dos chimpanzés com as mãos e os cinco dedos longos. Desembrulham balas e pacotes de biscoito, dividem ao meio a casca grossa da laranja do mato para servir de caneca na hora de beber água, manipulam gravetos para cutucar formigueiros, cavam, constroem ninhos e se atrevem a improvisar escadas com pedaços de pau. Parecem gente.
LARANJA SELVAGEM E IMPUNDU

Além de comprar a comida no comércio da cidade de Chingola, os funcionários do orfanato também colhem frutas produzidas na fazenda. Experimentei duas delas, bush orange, a laranja do mato africana, e impundu.

A laranja do mato tem a casca dura. Atirei fruta em uma parede para quebra-la. O conteúdo tem aparência de um cérebro formado por vários gomos. A polpa de cada gomo envolve um pequeno caroço e gosto é um pouco parecido com a nossa laranja pêra, não muito doce nem muito azeda. Gostei.

Impundu é uma fruta redonda e pequena com coroço e sabor que lembra um pouco banana nanica. Não é ruim. Os chimpanzés adoram tanto laranja do mato quanto impundu. Eles também apreciam um limão local de casca grossa e se deliciam com repolho. A comilança do almoço começa às 11h30 e dura mais de uma hora. Quando estão saciados os chimpanzés são soltos e, em bando, se embrenham na selva.

A VELHA DAMA E A SAUDADE
Sheila nos convida para um bate papo na casa dela. A conversa é longa. Queremos saber mais da vida dela mas é a protetora dos chimpanzés quem mais faz perguntas sobre a nossa equipe e sobre o Brasil. 

No canto da sala há uma televisão que raramente é ligada. A filha Sylvia, a nosso pedido, liga um velho vídeo cassete e exibe um antigo documentário em que uma das estrelas é Billy, a hipopótamo, e um dos personagens é Dave, o patriarca de morreu há seis vítima de enfisema pulmonar. Por alguns instantes Sylvia se retira da sala e Sheila pede para Felipe não gravar imagens dela naquele momento.

A saudade fala alto, as duas estão emocionadas e as lágrimas são inevitáveis.

Amanhã a gente volta porque ainda temos o que aprender sobre chimpanzés.





sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

África Selvagem


PESCADOR, PROFISSÃO PERIGO
A primeira visão da manhã no acampamento é de um homem varrendo as folhas que caíram das árvores. Noto que ele manca e logo desconfio que pode ter sido atacado por algum animal. Pergunto ao chefe dele que confirma minha suspeita. Mangomelo Phiri, 35 anos, casado e pai de três filhos, era pescador e quase perdeu a direita e a vida durante uma pescaria no rio Luawanga.

O ex-pescador, atual jardineiro, aceita gravar entrevista na margem do rio apesar de viver um grande drama até hoje, seis anos depois de incidente. Ele me conta que estava com os amigos jogando a linha para pescar peixe-gato quando aconteceu o ataque de um crocodilo gigante. O animal abocanhou sua perdeu e girou em torno do próprio corpo tomando a vítima na água.

Foi um grande desespero. Porém, um dos amigos dele reagiu com pauladas na cabeça do crocodilo que, por um curto momento afrouxou a dentada e Mangomelo conseguiu retirar a perna. O crocodilo avançou novamente, o pescador desmaiou, mas os amigos conseguiram salvá-lo. Mangomelo diz que quando acordou viu as luzes fortes de uma UTI de hospital. O estado de saúde dele era grave e o tratamento foi longo. Ele ficou cinco meses sem poder trabalhar e a esposa teve que trabalhar fora de casa para pagar o as despesas de uma clínica.

JOHN NUNCA VOLTOU
Mangomelo não é a única vítima dos crocodilos. Ele diz que conhece muitos outros pescadores que também sofreram ataques e que a maioria não teve a mesma sorte que ele e morreram.

Lembra que um primo dele, John, saiu para pescar e não voltou para casa. Ninguém sabe se ele foi vítima de crocodilo ou de hipopótamo. Admite que tem medo de voltar ao rio e que hoje está aqui na barranca para atender a nossa reportagem, lamenta que nunca mais mais voltará à antiga profissão de pescador mas conforma-se em ter um emprego como jardineiro para sustentar a família.

ÁGUA BEMBA
Nos despedimos de Mangomelo e partimos para o aeroporto de Mfuwe. Hora da partida para outras plagas. Decolamos às 12h30 quando o piloto Brad informou que serão pouco mais de duas horas de voo a bordo de um Cessna. Super Skywagon de seis lugares. Pousamos às 14h40 no aeroporto Kasompe, em Chingola. 

Ao sobrevoar a cidade notamos grandes empresas de mineração lá em baixo, inclusive a brasileira Vale do Rio Doce que extraí cobre e exporta para a China. Também chamou a atenção uma usina nuclear em plena área urbana. Percorrendo de carro as largas avenidas de Chingola me encantei com o casario. Grandes mansões se espalham pela cidade o que me faz acreditar que é o resultado da expressiva mineração, item número um da economia em Zâmbia.

Viajamos cerca de 2 horas até chegar ao local da próxima pauta, Chimfunshi, um orfanato de chimpanzés. Chimfunshi em dialeto Bemba quer dizer "lugar que tem muita água" e é dela que vamos beber. Porém, só amanhã, depois que o sol raiar.

Durante uma semana o trabalho foi intenso e com pouco tempo para descansar. Desde que decolamos em São Paulo não tivemos folga. Ingrid e Felipe vão direto para a cama e eu vou dormir mais tarde porque tenho muito o que escrever.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

África Selvagem


O REFRESCO DA CHUVA
Mesmo exaustos das longas jornadas de trabalho acordamos bem cedo. Quando o despertador do iPad soou às seis da manhã fui conferir as condições do tempo. Choveu durante a madrugada e as gotas d'água que eu ouvia de dentro do meu chalé caíam das árvores encharcadas. 

O céu estava encoberto por nuvens esparsas e a temperatura pedia um agasalho leve. Situação oposta ao calor intenso que suportamos nos últimos dias. Eu não tinha apetite para saborear a farta comida do café da manhã. Comi apenas meia fatia de pão com manteiga, tomei uma xícara grande de café e já estava pronto para as pautas do dia.

ELEFANTES ATACAM
Amon Mwale, 43 anos, casado, pai de três filhos, agricultor na vila de Kawaza vive um drama em seu pedaço de terra. Os elefantes viraram praga para a lavoura de subsistência. Problema comum entre todos os pequenos fazendeiros do vale do rio Luangwa. 

A superpopulação de elefantes famintos se tornou um pesadelo para quem depende da agricultura para alimentar a família. Com a seca que castiga as savanas os elefantes invadem as vilas e comem as plantações. Na época da cheia do rio são os hipopótamos que invadem as propriedades. Amon perdeu 60 por cento do milho que plantou e também viu os pés de algodão serem destruídos pelos paquidermes. 

Esta é a época das mangas. Os pés deveriam estar carregados mas os elefantes estão saboreando boa parte da colheita.


NINGUÉM DORME EM PAZ
Como a invasão acontece à noite as famílias que vivem na roça não conseguem dormir direito. Os adultos se revezam em plantões durante a madrugada para contra-atacar os elefantes que  se aproximam das lavouras. Amon diz que ele e a mulher se revezam durante a noite armados com tochas para espantar os animais. "Não dormimos em paz", lamenta o agricultor. 

Encarar os elefantes é perigoso porque eles atacam humanos e matam. Ele conta quem um vizinho, deficiente auditivo, quase morreu depois de um ataque de elefante. "Se salvou por um milagre", acredita.

Amon sabe que a solução é colocar cerca elétrica na propriedade mas, tanto ele quanto os demais pequenos sitiantes de Zâmbia não têm dinheiro para isso. Eles mal conseguem alimentar e dar educação para os filhos e não sobra para tal investimento. O agricultor sonha com a ajuda de alguma organização não governamental, como aconteceu no Malawi, país vizinho. Lá os pequenos produtores ganharam os materiais para cercar as pequenas fazendas.

PLANTÃO NOTURNO
Quando anoiteceu alguns agricultores se reuniram em volta de uma fogueira na vila de Kawaza. Ficamos com eles parte da noite mas, naquele pedaço do vale do rio Luawanga os elefantes não atacaram enquanto estivemos lá. Tivemos que voltar para o acampamento porque nossos corpos sucumbiam de cansaço. Não soubemos se os bichos apareceram. Mas temos certeza de que o pesadelo dos pobres agricultores não vai terminar tão cedo.


RECEPÇÃO KUNDA
Seguimos para outra comunidade da vila de Kawaza. Nos encontramos com Obbie Banda, um líder local. Pergunto porque tanta gente tem o sobrenome Banda, o mesmo de Mathews e Malemia. 

Ele responde que é porque são pessoas da mesma tribo. Os Kunda, que vivem ao leste de Zâmbia, são excelentes anfitriões. Fazem de tudo para agradar os visitantes. Logo na chegada as mulheres oferecem manga madura cozida. A fruta fica com gosto de doce de batata doce. Prefiro o sabor da manga apanhada no pé que deixa fiapos entre os dentes. 

Estou acostumado ao sabor que experimentei na infância. Ao ver uma menina trepada em uma mangueira não perco a oportunidade e também subo na árvore para apanhar a fruta. É a oportunidade de reviver meus tempos de moleque em Guaianás, distrito de Pederneiras - SP. Mas agora não há tempo a perder, o menino cresceu e não há tempo a perder trepado na mangueira porque tem que trabalhar.

ARQUITETURA TRIBAL
Obbie me guia pelo grande terreiro disposto a mostrar como vivem os Kunda da sua comunidade. Várias pequenas edificações feitas de adobe, madeira e palha formam as habitações. Poucas são de tijolos. A privada fica em um cercado de palha com uma fossa e um vaso sanitário de madeira no centro. Na entrada, sobre uma mesinha fica uma bacia com água, sabonete e um rolo de papel higiênico. O ambiente para tomar banho é separado e tem uma laje de concreto no meio para não sujar os pés no chão batido.

A cozinha é um construída em circulo, tem parede baixa de barro, estrutura de madeira e cobertura de palha. No chão, três pedras servem de suporte para panela com vãos para queimar a lenha. O quarto, também separado, pode ser circular, quadrado, retangular, de barro ou de tijolos, dependendo do recurso financeiro do dono. 

A sala é um quiosque com tapete de palha e cadeiras rústicas de madeira. Toda família tem silo para armazenar a colheita e galinheiro. Um deles me chama a atenção porque n?o abriga galinhas mas serve como casa para pombas. Obbie me surpreende quando afirma que os Kunda têm hábito de comer pomba e acrescenta que quando há harmonia entre eles e os visitantes a ave é servida como refeição. Ingrid faz careta diante da opção do cardápio e digo ao anfitrião que aceitamos o convite para o almoço mas preferimos galinha.



COMENDO COM AS MÃOS
Sentados em uma esteira de palha na sala de visitas circular esperamos pela comida enquanto chupamos manga cozida. Primeiro nos ofereceram sobremesa para depois servir o prato principal. 

As mulheres Kunda, trajando longos vestidos de colorido forte, se ajoelham para servir o alimento no chão. Purê de milho - base da alimentação no interior de Zâmbia -, refogado de folhas de abóbora, e frango cozido formam o prato do dia. Todos comem com as mãos. 

Ao nosso lado balde com água tirada do poço, sabão, bacia e toalha para o asseio após a refeição. Estava com o estômago gritando de fome e devorei um prato cheio com prazer.

O BATUQUE AFRICANO
Antes da nossa partida os Kunda reservam uma surpresa. Batuqueiros castigam seus instrumentos de percussão e mulheres com roupas multicoloridas cantam e dançam em um espetáculo típico africano. A alegria toma conta da tribo enquanto relaxamos sob os pés de manga à espera da digestão.



FANNY, A FEITICEIRA
Não muito distante dali vamos conhecer Hetina, ou melhor, Fanny Kazimete de 63 anos, uma velha curandeira respeitada pelos Kunda. Ela diz que em 1973 descobriu que era o instrumento de um espírito de nome "Hetina" que utiliza o seu corpo para curar pessoas. Com uma Bíblia nas mãos, vestindo gorro e vestido longo e brancos e um cajado também branco ao lado ela se acomoda em uma cadeira e diz que quer contar a sua história. O gorro e o vestido têm estampa em destaque de cruz vermelha. Ela fala em dialeto chinyanja e temos ajuda de um tradutor para o inglês.

Quero saber quem é Hetina. Fanny diz que Hetina vem do céu para ajudar as pessoas doentes. Afirma que somente ao tocar no enfermo ela já sabe qual é o mal que tem que ser atacado e que cura até mesmo ferido à bala em guerra. Segunda a velha, doentes mentais saíram do seu quintal sem a doença que os atormentava. 

Ela também garante que soluciona problemas estomacais, torna férteis mulheres que não engravidam e deixam potentes os homens que não conseguem satisfazer sexualmente as suas mulheres. Vai além e acrescenta que dispensa transfusões de sangue por causa do risco de contaminação pelo vírus HIV e serve a estes pacientes um chá avermelhado feito com um pedaço de madeira que ela colhe no campo. 

Em um pequeno galpão rústico que ela chama de farmácia há um estoque de raízes, troncos, cascas de árvores e uma variedade de pó que ela jura servir de remédio para aliviar os males das pessoas que a procuram.
Mesmo isolada naquele fim de mundo, sem energia e, consequentemente, sem televisão, internet ou qualquer outro aparelho eletrônico, Hetina, ou melhor, Fanny, pede à produtora Ingrid que envie a ela uma cópia da reportagem que gravamos em vídeo.

Para quem acredita em curandeirismo...






segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

África Selvagem

O BEBÊ ESTÁ MORTO

Nos despedimos da equipe que nos deu apoio no Zebra Park e partimos para uma viagem de 5 horas a bordo de uma Land Rover sem capota para observar melhor a natureza que teremos pela frente. Vamos ao Wildlife Park e temos certeza que encontraremos uma fauna sortida por onde passarmos.

Hiena, girafa, elefante, mongoose e javali - o Timão e o Pumba do filme "Rei Leão", búfalo, veado, babuíno são as espécies vivas que conseguimos filmar. Até aí só tivemos alegria, mas, encontramos a tristeza. Uma impala fêmea está morta sob uma árvore. Malemia, supõe que ela foi vìtima de ataque de um leopardo. 

Esse felino costuma arrastar suas presas para o alto das árvores para suas refeições, mas, segundo o nosso guia, algo ou alguém assustou o animal que abandonou o antílope no chão. Nos aproximamos tendo o cuidado de antes olhar ao redor e nos galhos da árvore porque certamente o leopardo está por perto e não quero servir de sobremesa. 

Quando pensei que já havia narrado tudo para a reportagem da televisão, Mathews me chama atenção para um detalhe que me deixa triste. A impala estava prenhe, prestes e ter seu filhote, e a pequena cabeça do feto estava para fora do corpo da mãe. Meu lamento logo se dissipou na reflexão de que aquela cena faz parte do mundo selvagem e que cada animal tem o seu papel, ou a sua sina, na cadeia alimentar.


LEÕES EM CLOSE

Nosso encontro com leões no dia anterior fui rápido e precisávamos de muito mais imagens das feras. Vimos abutres nos galhos de secos de algumas árvores. Eles seguem os felinos para ficar com as sobras da comida ou vice-versa, leões sabem que tem animal morto onde tem abutre. Uma pista importante e, não demora para encontrarmos o rei da selva e sua turma. Primeiro avistamos uma fêmea no leito seco de um rio. Preguiçosamente ela se esparramava pela areia. Às margens, mais duas fêmeas e um macho também curtiam sesta. Na sombra, os três  ignoravam nossa presença. Estávamos a bordo do carro e, teoricamente, em segurança. Mesmo assim nosso tom de voz era baixo e os movimentos eram lentos e calculados para não atrair a atenção das feras. Plano geral, aberto, close e big-close. Felipe e Ingrid "deitaram e rolaram". Tiverem tempo suficiente para encher o banco de imagens da TV Record.


A FAMÍLIA DO MATADOR
Depois de cinco horas de solavancos e vento na cara, a Land Rover estacionou em uma pequena vila de Mfuwe, onde vive a família de Mathews. Foi só alegria quando papai voltou para casa. Era visível de longe a arcada dentária estampada pelo sorriso das crianças. Depois de três semanas a mais de 120 quilômetros de distância, vieram esposa, filhos, pai, mãe e sobrinhos para recepcionar o nosso segurança. "Me dê dinheiro que estou precisando", brincou o velho pai em dialeto chinyanja. Todos sabem que quando o ranger retorna de uma temporada de trabalho traz o pagamento do patrão e as gorjetas no bolso. Mathews tem seis filhos e o dinheirinho é contado para alimentar tantas bocas. Penso que o pai dele, na verdade, não estava brincando quando pediu dinheiro. A pobreza campeia as vilas da tribo Kunda à qual aquela grande família pertence.

NOITE DE BICHO E TEMPESTADE
Nos despedimos do nosso ranger e dos seus parentes e seguimos para a etapa seguinte da nossa aventura. Mal desembarcamos nossas mochilas em novo acampamento, o Wildlife Camp, e saímos para um safari noturno. Filmamos apenas alguns animais. 

Quando estávamos à procura de um leopardo tivemos que encerrar o trabalho. Uma chuva torrencial interrompeu as gravações anunciando que o período de seca está chegando ao fim. A tempestade chegou com clarões de relâmpagos e estrondos de trovões. 

Era tão forte que tivemos que proteger os equipamentos e nos cobrir com capas impermeáveis que resolveram parcialmente o problema. Chegamos no acampamento em sopa quando os relógios marcavam 11 da noite. Havíamos acordado à seis da manhã. Foram 17 horas de trabalho apenas com curtos intervalos para as refeições. Dia longo e cansativo mas muito produtivo. Valeu!